Resenha de "A Psicologia em 'História da Loucura' de Michel Foucault"

19/06/2011 20:40

SILVEIRA, Fernando de Almeida; SIMANKE, Richard Theisen. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. In: Revista de Psicologia. Rio de Janeiro: Fractal, v. 21, 2009.

 

         Foucault, em seu livro História da Loucura, investiga as possibilidades de existência da Psicologia, da Idade Medieval à Modernidade, enquanto saber que se desenvolve envolta da constituição do sujeito louco, em decorrência do Renascimento, compreendendo como algo impensável durante esses períodos históricos.

         No Renascimento, a loucura é vista como uma expressão associada a forças místicas do sujeito, bem como do sobrenatural, onde o louco apresenta-se como o revelador das contradições sociais ou das verdades divinas, de acordo com uma concepção de uma medicina arcaica e superficial, transpassada por ameaças da fome, da tentação, da guerra e de problemas sociais.

         Em seguida, esse momento foi se modificando gradativamente, em decorrência do humanismo, tal como de Brant, Erasmo e Calvino, onde essa loucura era proveniente da razão com base em uma reflexão crítica, erigindo uma prática discursiva de que a loucura teria sua origem no próprio homem, de acordo com seus comportamentos de conduta, organizados ou não, e não como efeito de um mistério oculto, como atribuído anteriormente.

         Já no classicismo, nos séculos XVII e XVIII, houve a invenção institucional de casas de internamento, bem como, por exemplo os Leprosos, em Paris, que havia um grande número em termos quantitativos. Os internamentos ocorriam de várias maneiras, como por meio de cartas régias, encaminhamentos policiais, por solicitações e entre outras formas.

         Dentro dessas casas de internamento haviam indivíduos de várias classes e encargos sociais: pobres, desempregados, criminosos, prisioneiros políticos, prostitutas, usurários, sodomitas, crianças órfãs, mulheres viúvas, ateus, vagabundos, epilépticos, senis, alquimistas, blasfemadores, sacrílegos, regicidas. Apenas 10% eram internados por insanidade.

         Ou seja, tratava-se de um depositário social para descartar, através da higienização social, as pessoas minoritárias e discriminadamente excluídas, o que de fato incluía não somente portadores de alguma patologia ou transtorno mental, mas também as pessoas não aceitas pela sociedade, vistas como “anormais” por não seguirem o mesmo padrão vigente.

         Neste frame, como um sujeito desses, que fora arrancado da sua convivência com o social e aprisionado em um sistema manicomial, sem qualidade alguma de vida, poderá encontrar ou ter possibilidades para se recuperar ou viver uma vida mais saudável e melhor? Isso demonstra claramente como sendo uma forma pela qual se busca estabelecer uma relação de poder, nota-se através do isolamento para com as pessoas minoritárias da sociedade.

         Com o passar dos séculos, uma nova sensibilidade social foi se instalando com o banimento da loucura e sua imaginação medieval, solidificando o conhecimento científico, onde a loucura passa a ganhar uma nova conotação, não exatamente como verdade já dotada, nem mesmo dentro de um molde psicológico.

         Mesmo mais tarde, a exclusão e o isolamento ainda havia, bem como as casas de internamento. A prática de internamento, embora ainda se configurasse em ambiente alienante, ocorreu uma reconfiguração “da ética” e “da organização”, estabelecendo novas normas de integração social, dentro dessa experiência psicopatologizável.

         Essa reconfiguração deu espaço para uma “ética” onde o sexo estava diretamente associado às mulheres “libertinas”, às prostitutas, aos devassos e aos indivíduos portadores de doenças venéreas, condenando a conduta desregrada. Nesta lógica, o internamento, além de terapia passa a ser também um castigo na “purificação” das almas e a “cura” dos corpos.

         Uma higienização, a qual as mulheres “libertinas”, os portadores de doenças venéreas e entre outros, eram tidos como “impuros” por suas relações com a sexualidade e/ou a liberdade de pensamento frente às proibições religiosas e políticas, e atravessando por uma ótica moralizante de que essas pessoas eram desregradas, como causa de tais consequências. Um Absurdo isso.

         Com isso, há a invenção de novas concepções relativas à sexualidade e ao amor – ao profano e ao sagrado. A psicopatologização dessas condutas, muitas vezes vista como “louca”, a partir desta correlação da loucura aos discursos contra-sensuais passou a ser reconhecido como permeados de falha, erro ou descompasso do entendimento do sujeito, do que é moral ou socialmente “adequado”.

         A loucura como erro e/ou falta, alavancou as bases dos saberes psiquiátricos e psicológicos, pela prática discursiva e social do internamento, abrindo caminho para os estudos desses comportamentos enquanto anomalias psicológicas. Pois o internamento, inicialmente, acontecia pela solicitação de familiares, de párocos, do tenente policial ou do rei, sem nenhum laudo pericial médico, se necessário ou não.

         Isso, em meu ponto de vista, talvez justifique a quantidade de pessoas não insanas presentes nas casas de internamento, como se, infelizmente, estivessem “doentes”, enquanto poucas delas eram, factualmente. É neste espaço e contexto que a jurisprudência da alienação torna-se indispensável para o conhecimento prévio, o qual emerge uma psicologia das debilidades mentais, ou como a-chamamos, – a psicopatologia.

         Em sucessão, autores como Voltaire, conceituam a loucura como provinda do corpo, não da alma, tal como disse Voltaire, a loucura é “doença dos órgãos do cérebro”, como maneira de proteger a alma, pois a loucura estaria relacionada aos distúrbios do organismo que impedem a percepção “superior” da alma. Como se o corpo fosse submisso à alma.

         A demência, tida como uma manifestação mais típica da loucura, é a qual perturbaria a “alma racional”, de acordo com Willis, encerrando-se no corpo pela existência de um elemento misto, - a “alma sensitiva”, que veicularia os poderes intermediários e mediadores da imaginação e da memória. Assim, forneceria impressões sensíveis na produção das emanações do espírito ou alma, enquanto a “alma corporal” residiria no cérebro, em espaço orgânico e funcional, formada pelos espíritos animais.

         Desta forma, a demência seria fruto de perturbação do cérebro e dos espíritos, ou de ambos ao mesmo tempo. Aqui surgiria também outras formas, tais como o frenesi, a idiotia, a imbecilidade e o disparate, e elementos afins. O que dá provas concretas, segundo Foucault, sobre a possibilidade de inexistência da Psicologia no classicismo.

         Estamos certos ao afirmar que não havia ainda tratamento psicológico propriamente como conhecemos hoje utilizado no âmbito profissional da psicologia. Os procedimentos que existiam eram, como por exemplo, tratar um louco com chá amargo, como forma de trabalho terapêutico, misturava-se corpo e alma, não levando em conta o método empírico de fazer ciência. Eu me pergunto: Isso surtiria algum efeito biológico no organismo? Teria, o chá amargo ou algo afim, o poder de curar um louco ou uma doença qualquer? 

         Contanto, mesmo antes da Revolução Francesa já se notava uma ‘individualização’ da loucura, como na redução e limitação dos internamentos, liberando alguns do internato, enquanto os loucos ainda permaneciam e, dessa vez descaradamente, acorrentados, em sua maioria.

         Assim, encerrava-se a fase do internamento, de acordo com a “Declaração dos Direitos do Homem”, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte da França, em sua prerrogativa de não deter ninguém a não ser nos casos da lei. Enquanto isso, os loucos internados passaram a ser mantidos mediante averiguação de juiz e laudo médico pericial que ateste determinada loucura.

         Todavia, somente a partir disso, percebemos que surge então, uma psiquiatria positiva de análise e identificação da loucura, por parte de médicos peritos, diferentemente do que realizava-se antes. Também aparecem propostas de internamentos não totalmente restritos de sua liberdade, com administração de terapia para sua “plena” recuperação, onde o controle social exercido sobre o louco passou a ser um tanto maior.

         Contudo, ao que me consta, atitudes de controle social para com os “loucos” continua fortemente impregnadas em locais de internamento até nossos dias, onde os sujeitos portadores de doenças ou transtornos mentais são violentamente mal-tratados e em vida de crueldade. Além de outros fatores, como a discriminação e a exclusão social, sem condições alguma de vida, e muitas vezes sem poder, ao menos, estar livre de torturas.

 

 

(Resenha elaborada em 2011, UNOCHAPECÓ, São Lourenço do Oeste).